Pintura de Carlos Porfírio existente no Museu de Faro
Zorra
berradeira
A “Zorra berradeira” é uma
entidade mítica das serras do Baixo Alentejo e Alarve. Entre todos os “medos”
de que ouvi falar nesta região é o mais temido. Na aldeia de S. Luís também é
conhecida por “zorra magra”. Entre os velhos, há quem afirme tê-la ouvido de
noite, e tratar-se de um animal que nunca ninguém vê, mas que existia; mas há
também quem afirme nunca a ter ouvido, e tratar-se de um “medo” com que
antigamente se assustava as pessoas, e particularmente os jovens.
Em “O Algarve Encantado na Obra
de Carlos Porfírio” (edição do Museu de Faro - 2001) há uma descrição deste,
feita no séc. XIX, por Francisco Xavier de Ataíde Oliveira. Essa descrição tem
mais detalhes que os que até hoje tenho conseguido pelos testemunhos diretos
dos velhos do concelho de Odemira. Diz:
“O povo do Algarve fala da zorra berradeira com um
medo horrível.
Diversas são as opiniões que correm a respeito
dessa entidade malfazeja.
Uns afirmam que a zorra berradeira é uma
transformação de moura encantada. Certa moura encantada, desejando escapar-se
aos funestos efeitos do encantamento, rebelou-se contra Allah, que a castigou,
desgarrando-a e tornando-a objecto de ódio de toda a gente, mouros e cristãos.
Outros sustentam que aquele ser horrível é a alma
penada de uma velha, em vida muito má, e que respondia a quem lhe censurava a
sua vida escandalosa:
- Neste mundo anda-se como se quer. Porque no outro
nada podem saber.
De noite, a deshoras, tem muita gente ouvido
berrar, nos cumes dos mais agrestes serros, a zorra fatal. Vista de longe
parece uma cabra, de mais perto uma imunda ave, de enormes dimensões, com as
asas manchadas e sujas. É o verdadeiro retracto das arpias de outras eras.
Pessoas há que têm sido acometidas de noite pela
zorra berradeira e se têm visto em grande perigo. Salta sobre o indivíduo com
uma força enorme e no mesmo momento, como um velo arremessado pela força do
vento, vai pousar sobre o serro mais alto. Exala de si um vapor imundo e
nojento e, berrando atroa os serros e vales.
Em muitos concelhos do Algarve é a zorra berradeira
muito mais temível do que as mouras encantadas ou as bruxas.
Parece que nos seus berros só anuncia desgraças e
maldades.
Enquanto as Gens ou Jens são uns seres bem fazejos
e queridos, a zorra berradeira é má e odiada por toda a gente.
A zorra berradeira é verdadeiramente a
transformação das fúrias dos antigos. É tão má como estas e como estas igualmente
temida.
Quando alguém tem a infelicidade de ouvir de noite
a zorra berradeira, conta logo com desgraça em casa.
(…)
Quando se pergunta a alguém, onde reside a zorra
berradeira, responde imediatamente:
Em Odelouca.
Odelouca é uma ribeira que vem desaguar no rio de
Portimão.
Há ocasiões em que a zorra berradeira se converte
em um verdadeiro flagelo no concelho de Monchique. Os habitantes dos sítios de
Odelouca não se atrevem a sair de suas casas, à noite. (…)”
Vejamos a origem provável desta entidade:
SØR ou SØIR [ZOUR ou ZOUIR] é um
“bode; cabeludo; demónio (em forma de
bode)”, mas também “horrorizar-se,
eriçar-se, tempestuoso; temor, tempestade; tornar-se tempestuoso, tempestade,
ficar perplexo, voar (…)”. Por outro lado ZWR [ZUÔR] quer dizer “feder, ser intolerável”[1].
É claro que esta “zorra” pouco tem que ver com a raposa, que por aqui também se
chama zorra. A única relação vem do ZWR – cheirar
mal, que de resto está possivelmente na origem do nome popular do
carnívoro.
“Berradeira” provém certamente de
BRD+HR [bêrrêdeir], e significa “animal
manchado da serra”. Este BRD é comum ao nome de um pequeno carnívoro que
existe no Sul do país, e que por aqui se chama “escalabardo”. Repare-se que
este “escalabardo” não é mais que SKL+BRD – proceder
mal, ou ser insensato + animal manchado.
O outro nome que encontramos em
S. Luís – “Magra” – deve provir de “MAGÔR”, que em hebraico antigo significa “espanto, horror”, ou de “MGR” – “deitar por terra, derrubar para baixo”.
Assim a zorra berradeira deve ter
significado inicialmente “animal manchado
da serra + demónio (em forma de bode)”, ou numa tradução mais fácil, “demónio (em forma de bode) manchado da serra”.
Mais tarde, foram-se acrescentando novos atributos aos originais, atributos
esses que resultam, como acontece em muitos outros casos, de significados de
expressões foneticamente próximas, quer oriundas das línguas semitas antigas,
quer do português actual. Por isso o animal também “voa” numa “tempestade”
(SØR), e “exala em si um vapor imundo e
nojento” (ZWR).
É provável que este ser mítico
das serras do Sul seja uma importação de um mito antigo do próximo oriente que
viajou com os colonos que por aqui vieram estabelecer-se, e não, como se
poderia pensar, de um mito criado nesta região do país. Será mesmo muito
provável que actualmente a zorra berradeira já não exista em lado algum da
região do mediterrâneo oriental onde provavelmente nasceu, e tenha permanecido
nesta antiga colónia distante entre os descendentes dos emigrantes desses
tempos. Pode ser algo semelhante ao que acontece ainda hoje na ilha do
Príncipe, em que se representam episódios de combates entre mouros e cristãos,
alguns dos quais já esquecidos em Portugal, mas que se mantêm vivos na nossa
antiga colónia.