sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

AS VELHAS LENDAS FENÍCIAS QUE AINDA SOBREVIVEM

Pintura de Carlos Porfírio existente no Museu de Faro

Zorra berradeira

A “Zorra berradeira” é uma entidade mítica das serras do Baixo Alentejo e Alarve. Entre todos os “medos” de que ouvi falar nesta região é o mais temido. Na aldeia de S. Luís também é conhecida por “zorra magra”. Entre os velhos, há quem afirme tê-la ouvido de noite, e tratar-se de um animal que nunca ninguém vê, mas que existia; mas há também quem afirme nunca a ter ouvido, e tratar-se de um “medo” com que antigamente se assustava as pessoas, e particularmente os jovens.

Em “O Algarve Encantado na Obra de Carlos Porfírio” (edição do Museu de Faro - 2001) há uma descrição deste, feita no séc. XIX, por Francisco Xavier de Ataíde Oliveira. Essa descrição tem mais detalhes que os que até hoje tenho conseguido pelos testemunhos diretos dos velhos do concelho de Odemira. Diz:

“O povo do Algarve fala da zorra berradeira com um medo horrível.
Diversas são as opiniões que correm a respeito dessa entidade malfazeja.
Uns afirmam que a zorra berradeira é uma transformação de moura encantada. Certa moura encantada, desejando escapar-se aos funestos efeitos do encantamento, rebelou-se contra Allah, que a castigou, desgarrando-a e tornando-a objecto de ódio de toda a gente, mouros e cristãos.
Outros sustentam que aquele ser horrível é a alma penada de uma velha, em vida muito má, e que respondia a quem lhe censurava a sua vida escandalosa:
- Neste mundo anda-se como se quer. Porque no outro nada podem saber.
De noite, a deshoras, tem muita gente ouvido berrar, nos cumes dos mais agrestes serros, a zorra fatal. Vista de longe parece uma cabra, de mais perto uma imunda ave, de enormes dimensões, com as asas manchadas e sujas. É o verdadeiro retracto das arpias de outras eras.
Pessoas há que têm sido acometidas de noite pela zorra berradeira e se têm visto em grande perigo. Salta sobre o indivíduo com uma força enorme e no mesmo momento, como um velo arremessado pela força do vento, vai pousar sobre o serro mais alto. Exala de si um vapor imundo e nojento e, berrando atroa os serros e vales.
Em muitos concelhos do Algarve é a zorra berradeira muito mais temível do que as mouras encantadas ou as bruxas.
Parece que nos seus berros só anuncia desgraças e maldades.
Enquanto as Gens ou Jens são uns seres bem fazejos e queridos, a zorra berradeira é má e odiada por toda a gente.
A zorra berradeira é verdadeiramente a transformação das fúrias dos antigos. É tão má como estas e como estas igualmente temida.
Quando alguém tem a infelicidade de ouvir de noite a zorra berradeira, conta logo com desgraça em casa.
(…)
Quando se pergunta a alguém, onde reside a zorra berradeira, responde imediatamente:
Em Odelouca.
Odelouca é uma ribeira que vem desaguar no rio de Portimão.
Há ocasiões em que a zorra berradeira se converte em um verdadeiro flagelo no concelho de Monchique. Os habitantes dos sítios de Odelouca não se atrevem a sair de suas casas, à noite. (…)”

Vejamos a origem provável desta entidade:

SØR ou SØIR [ZOUR ou ZOUIR] é um “bode; cabeludo; demónio (em forma de bode)”, mas também “horrorizar-se, eriçar-se, tempestuoso; temor, tempestade; tornar-se tempestuoso, tempestade, ficar perplexo, voar (…)”. Por outro lado ZWR [ZUÔR] quer dizer “feder, ser intolerável[1]. É claro que esta “zorra” pouco tem que ver com a raposa, que por aqui também se chama zorra. A única relação vem do ZWR – cheirar mal, que de resto está possivelmente na origem do nome popular do carnívoro.

“Berradeira” provém certamente de BRD+HR [bêrrêdeir], e significa “animal manchado da serra”. Este BRD é comum ao nome de um pequeno carnívoro que existe no Sul do país, e que por aqui se chama “escalabardo”. Repare-se que este “escalabardo” não é mais que SKL+BRD – proceder mal, ou ser insensato + animal manchado.

O outro nome que encontramos em S. Luís – “Magra” – deve provir de “MAGÔR”, que em hebraico antigo significa “espanto, horror”, ou de “MGR” – “deitar por terra, derrubar para baixo”.

Assim a zorra berradeira deve ter significado inicialmente “animal manchado da serra + demónio (em forma de bode)”, ou numa tradução mais fácil, “demónio (em forma de bode) manchado da serra”. Mais tarde, foram-se acrescentando novos atributos aos originais, atributos esses que resultam, como acontece em muitos outros casos, de significados de expressões foneticamente próximas, quer oriundas das línguas semitas antigas, quer do português actual. Por isso o animal também “voa” numa “tempestade” (SØR), e “exala em si um vapor imundo e nojento” (ZWR).
                                                                                    
É provável que este ser mítico das serras do Sul seja uma importação de um mito antigo do próximo oriente que viajou com os colonos que por aqui vieram estabelecer-se, e não, como se poderia pensar, de um mito criado nesta região do país. Será mesmo muito provável que actualmente a zorra berradeira já não exista em lado algum da região do mediterrâneo oriental onde provavelmente nasceu, e tenha permanecido nesta antiga colónia distante entre os descendentes dos emigrantes desses tempos. Pode ser algo semelhante ao que acontece ainda hoje na ilha do Príncipe, em que se representam episódios de combates entre mouros e cristãos, alguns dos quais já esquecidos em Portugal, mas que se mantêm vivos na nossa antiga colónia.




[1] - Este deve ser um, entre muitos casos, em que um termo da língua popular se funde com o latim para dar origem a um termo do português. “Suor” do português deve a confluência espontânea entre o “SUDOR” latino com o ZUÔR semita.

Sem comentários:

Enviar um comentário