segunda-feira, 14 de julho de 2014

Fronteiras antigas e modernas

Mesmo em muitas populações animais o “território” é algo de fundamental para a vida dos grupos. Para o Homem deve ter sucedido o mesmo desde o tempo em que dependia da caça e recoleção, mas a importância do "território posse" de uma comunidade ampliou-se certamente após a  sedentarização e desenvolvimento da agricultura, dado o enorme esforço que é necessário para transformar um espaço natural numa paisagem humanizada (com os seus campos arroteados, plantações de árvores de fruto, silos, casas, estruturas defensivas para humanos e animais, poços, etc.). Por isso os limites dos territórios foram referência espacial de primeira importância, e criaram um conjunto de topónimos que ainda hoje se podem encontrar no país.

Em Portugal existem pelo menos dois conjuntos de topónimos que corresponderam a nomes dados a antigas fronteias: Os da família de "Miséria" (mas com variantes como "Macieira", "Maceira", "Meixeira", "Ameixeira", etc.), e os da família de "Cavalo" (com variantes como "Cavaleiro", "Carvalheiro", etc.). Vejamos um exemplo.

Os topónimos “Miséria” e “Misérias” ocorrem apenas onze vezes na Carta Militar de Portugal. Em acádio, “MISRU” significa o mesmo que “MESRU” em assírio: “fronteira, território”. Repare-se na imagem em baixo que dos dez topónimos registados nas cartas dos S. C. E. ainda hoje oito são pontos de fronteira de concelhos, e os restantes poderão ser limites de outras realidades administrativas ainda existentes (freguesias), ou ter sido de concelhos extintos, feudos desaparecidos, etc.


Outro radical que em "fenício" está relacionado com “limite de território” é “GBL”. Vejamos o significado nas línguas antigas do Próximo Oriente desta palavra e de palavras foneticamente próximas: a palavra “GB’” em ugarítico significa “colina, altura”; “GBØH” em hebraico antigo é “colina, outeiro, elevação”, o que é basicamente o mesmo. “GBL”, em ugarítico, significa “limite, fronteira; cimo, monte”, e em hebraico antigo é “montanha, fronteira, limite, fazer a divisão, marcar o limite ao redor de”, o que confirma a ideia anterior (dada por “GB’”) e a especifica. Por outro lado “QABAL”, em acádio, significa “ao meio de”, mas há também várias formas foneticamente próximas cujo sentido se relaciona com conflitos: “QABÂLU” em assírio é “afrontar-se com o inimigo, lutar”; “QABLU” em acádio significa “encontrar-se hostilmente, combate”, etc.

É possível que entre nós tenha sido usado principalmente para designar limites em áreas pouco ocupadas de serra ou campos pobres, mas que eventualmente tenham sido alvo de litígio na sua definição por parte das comunidades vizinhas. Mas isto para já é apenas uma possibilidade.

Este radical deu origem a topónimos com “Cavala” e “Cavalo” , “Cavaleiro” e “Cavaleira” e ainda “Carvalho”, “Carvalheiro” e Carvalheira”, e outras palavras próximas [1]. Verificou-se neste caso uma evolução do “G” original do "fenício", para um “C” do português atual, e num fenómeno comum de aproximação a palavras do português padrão, e a habitual “colagem” a palavras existentes no léxico das populações locais.

Embora muitas vezes os topónimos deste grupo correspondam a limites de unidades administrativas atuais, como freguesias, concelhos ou mesmo distritos, eles devem também ter sido usados para designar limites de propriedades comunitárias das aldeias, de pastagens de determinadas comunidades, etc.

O desenvolvimento destes estudos baseados na interpretação da toponímia com base na língua pré-latina  (a que de facto era falada pelo povo que criou os nomes dos sítios) permitirá conhecer muito mais do nosso passado: caminhos, povoações, necrópoles... Está tudo lá, é só preciso saber ler...




[1] - A “Carta Militar de Portugal” na escala de 1: 25 000 regista  mais de 200 locais cujo nome é da família de  “cavalo”, e da família de “carvalho” tem perto de mil.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Como os latinistas escondem a origem fenícia da língua portuguesa

A ideia de que o português nasceu de uma língua a que podemos chamar “fenício” não é nova, apenas tem sido sistematicamente escondida por latinistas medíocres. Tentam fazer crer que a língua do povo foi esquecida e que esse mesmo povo (que somos nós) era constituído por uns matarruanos abrutalhados que não só deixaram de falar a sua língua, como nunca aprenderam a falar latim devidamente.

Contudo ao longo dos tempos muitos intelectuais constataram o óbvio: a língua que o povo falava antes da conquista romana era uma língua do grupo semita ocidental, que essa língua sobreviveu e é parte fundamental do português que falamos. Veja-se o que diz em 1712 D. Raphael Bluteau:

“(…) Primeiro que imperassem na Hispânia ao Romanos, é certo, que as duas nações a que chamamos Castelhana e portuguesa falavam alguma língua, se a língua Fenícia ou Cartaginesa, se outra composta destas duas, ou misturadas com idiomas de Gregos, Galos e outros povos adventícios, não o examino nem tenho notícia suficiente para decidir questão tão intricada como esta.”


D. Raphael Bluteau, “Vocabulário Portuguez e Latino” em 1712

quinta-feira, 22 de maio de 2014

O "Farilhão", o "Palheirão" e a sua origem comum

Muitas palavras que hoje nos parecem muito diferentes tiveram uma origem comum, mas com a passagem dos séculos e dos milénios sofreram uma evolução divergente de modo que hoje já não é fácil perceber que são o mesmo dito apenas de maneiras diferentes. Para conseguir perceber este fenómeno convém conhecer os fundamentos de evolução fonética entre as línguas antigas do Próximo Oriente e as línguas atuais do sudoeste da Europa (assunto que desenvolvi no meu "A Origem da Língua Portuguesa"), pois sem esse conhecimento será muitas vezes difícil compreender em profundidade a língua portuguesa. 

Na antiguidade a nossa língua não distinguia os sons "p" e "f", e por isso topónimos como "Palheirão" e "Farilhão" são exatamente o mesmo, embora possa não parecer à primeira vista. Repare-se que...

As rochas junto à costa que estão separadas desta às vezes poucos metros, e que se mantêm como pequenas ilhas mesmo na maré cheia, chamam-se no litoral alentejano “palheirão”. A cartografia militar à escala 1:25000 apresenta algumas destas rochas com o nome próprio, mas muitas outras existem, conhecidas apenas por “palheirão” ou acompanhado do topónimo mais próximo, por exemplo, “Palheirão da Samouqueira” em Porto Covo. É claro que essas rochas nunca tiveram palha nem serviram de palheiro, tanto porque não produzem qualquer tipo de palha, como porque seriam um local totalmente desapropriado para a guardar. Assim, o “palheirão” da toponímia litoral terá certamente uma outra origem.



Mas por outro lado um “farelhão” (ou “farilhão”) é exatamente o mesmo que um “palheirão”: uma pequena ilha, por vezes escarpada, um rochedo alto no mar. Note-se que se, por exemplo, se substituir o “p” de “palheirão” por um “f”, tem-se a palavra “falheirão” que é quase igual a “farelhão”. Convirá dizer que os dicionários geralmente apontam a origem da palavra “farelhão” para o termo grego “phalarós” com o significado de “que está branco de espuma”, o que é despropositado dado que os "palheirões" ou "farilhões" são precisamente locais onde não há espuma.



A origem do nome de ambas deve provir da raiz “pl” que em ugarítico significa “fender, rachar” e que se encontra na forma hebraica antiga “plḥ” com o significado de “abrir-se, atravessar, trespassar, cortar (em pedaços), rodela, pedaço, fatia, pedra de moinho” (portanto, pedaço de pedra), e de “rm”, “rôm” ou “rwn” (“plḥ +rm”, “plḥ +rôm”, ou “plḥ +rwm”), em que , o "rm" significa “altura, ser alto, elevar-se”. Significaria à letra neste caso “pedaço elevado” ou “pedaço de rocha alto”. 

Veja-se então, e é esse o objetivo destas linhas, como palavras hoje diferentes como "farilhão" e palheirão" têm exatamente a mesma origem. O mesmo acontece na toponímia em muitas centenas de casos, alguns bem mais difíceis de compreender (ou de explicar), como por exemplo "Grangaço" e "Grão de Aço", "Perna" e "Farinha", etc. 

E isto é só o princípio, porque o que há para descobrir é seguramente muito mais que aquilo que já se descobriu.