A chamada “batalha de Campo de Ourique”, em
que se incrementou o mito do “herói fundador”, tão ao gosto da cultura grega e
dos nossos historiadores dos últimos séculos, tem servido para louvar os feitos
heroicos do nosso primeiro rei. Contudo, das lendas que ficaram na voz do povo desses
tempos distantes, pouco há de fiável.
Sei no entanto que o povo nessa época falava
uma língua pouco latinizada (muito menos latinizada que o português que falamos
hoje), mas que paradoxalmente se escrevia em latim. Há portanto informação que
nos chega pelos escritos latinos que reproduzem o falar popular ainda muito “fenício”.
Esta lenda da “Batalha do Campo de Ourique” chega até nós como um caso
interessante desta dicotomia linguística.
O pouco que se sabe de objetivo sobre a
batalha de Campo de Ourique é que “…durante o Verão de 1139, Afonso Henriques
dirigiu um fossado constituído por forças bastante mais numerosas que o
habitual e que, apesar de ter sido atacado ou de atacar ele próprio um exército
considerável, regressou cheio de glória ao território cristão.”[1]
Fala-se igualmente de um “rei” Esmar
e de seu sobrinho Homar Atagor
(nunca identificados), e refere-se uma aparição que terá acontecido a D. Afonso
Henriques.
Gastaram-se rios de tinta a escrever sobre
a localização do referido confronto, já que há vários “Ourique” em Portugal, e
nada de seguro se determinou. Nem se determinou, nem se poderá certamente
determinar, porque a expressão “Campo de Ourique” provavelmente não se referia
a um lugar. Vejamos o que significava no falar fenício do povo:
Qm – adversário,
inimigo
Pdh – comprar
a liberdade, resgatar, libertar
Ør – cidade
Yqy – render
preito, temer, obedecer
Genericamente, a sequência QMPDØRYQY significa “o
inimigo resgatou a cidade do poder”. A dita batalha de “Campo de
Ourique” terá sido basicamente um confronto em que os adversários de D. Afonso
Henriques, derrotados em batalha ou antecipando a derrota, resgataram a
liberdade da sua cidade de origem. Por isso ninguém consegue perceber onde se
realizou a batalha, porque “Campo de Ourique” não se refere certamente ao local
onde decorreu a batalha, mas antes ao desfecho da mesma. De resto, existem em
Portugal 14 topónimos que incluem a palavra “Ourique”, em locais que vão desde
as margens do Douro até ao Baixo Alentejo, pelo que pode haver localizações da
batalha para todos os gostos.
Como se sabe as lendas ampliam-se e sofrem
metamorfoses como qualquer história popular (quem conta um conto…), e o mesmo
aconteceu por certo com a lenda desta batalha. Como em muitos outros casos “inventou-se”
uma história a partir da fonética da palavra. Se a mesma sequência fonética for
agrupada em unidades diferentes, e sofrer pequenas alterações proporciona
leituras que estão na base de outro aspeto da lenda:
Kh – aqui,
assim, de sorte que…
Môpt – símbolo,
sinal; maravilha, agouro
Dêrêke – caminho,
viajem, empreendimento…
O som “KHMÔPT
DÊRÊKE” (foneticamente próximo de QMPD
ØRYQY) deve ter dado origem ao “milagre/aparição” que a lenda refere, já
que pode significar algo como “de sorte que agouro maravilhoso”.
Quanto ao “rei” Esmar, é
fácil de perceber porque nunca foi identificado. Veja-se o que significa “esmar”
em fenício:
ØZ – ser forte
MHR – guerreiro
Portanto
“Esmar” (ØZ MHR) não é o nome de um rei árabe, mas apenas o nome que o povo
dava a um líder muçulmano da época: “GUERREIRO
FORTE”.
Quanto ao seu sobrinho, Homar Atagor,
que
seria certamente um nobre aliado do rei, também não parece
difícil compreender a origem do nome:
ØM – familiar,
parente, companheiro de clã ou de tribo
MHR - guerreiro
AT – junto
com, com auxílio; ao lado de…
GWR – atacar,
hostilizar…
Homar
Atagor poderá ser apenas “parente
do guerreiro que vem com auxílio atacar”.
Por
último e para rematar estas linhas, parece-me claro o povo falou uma língua
diferente da língua escrita (e se bem calhar falada) pelas elites políticas e
religiosas, e que essa língua era muito próxima das antigas línguas do Próximo
Oriente. Também me parece que os nossos investigadores da História deverão
aceitar este facto, porque só assim poderão evoluir na análise e interpretação
dos escritos do passado.