O texto que se segue corresponde a uma fração do primeiro capítulo do
meu trabalho “A Origem da Língua Portuguesa”, publicado em livro pela “Chiado
Editora” em Outubro de 2013. Tanto este fragmento, como o restante trabalho
(que na prática é um dicionário etimológico das palavras do português que têm
origem nas línguas antigas do Próximo Oriente) ajudam a compreender a
verdadeira origem da nossa língua. A leitura deste texto ajudará assim a
perceber quem somos e como nasceu a língua que falamos.
"Comecemos pelo princípio
Costuma-se classificar o português como língua latina. Mas o latim era
a língua dos conquistadores da Ibéria, não do seu povo. E o que é feito da
língua que o povo falava? Será que desapareceu sem deixar rasto? Ou pelo
contrário ela ainda vive entre nós, e convivemos com ela sem dar por isso,
usando-a cada vez que falamos ou escrevemos? E, se essa língua ainda existe,
qual será a sua origem?
Em 1837 foi publicado um artigo extraído das atas da sessão de 15 de
Setembro de 1835 da “Academia Real das
Sciências”. Nesse artigo, da autoria de D. Francisco de S. Luiz Saraiva[1], conhecido
popularmente como “Cardeal Saraiva”, intitulado “Glossário de Vocabulos Portuguezes Derivados das Linguas Orientaes e
Africanas Excepto a Arabe”, são referidos muitos termos da língua
portuguesa cuja origem se pode encontrar na “língua hebraica e na língua caldaica”.
Curiosamente, parece que este esforço de encontrar uma origem oriental
do português foi interrompido durante mais de um século, até que nos finais do
século XX, Moisés Espírito Santo retomou o tema, alargando o estudo da nossa
relação com o Médio Oriente à cultura, à religião popular, à toponímia, às
expressões idiomáticas da língua portuguesa, etc. Para além dos conhecimentos e
conclusões do seu notável trabalho de investigador, Moisés Espírito Santo
ofereceu um instrumento de trabalho valiosíssimo a quem queira conhecer a
origem primeira da nossa língua, mas também a quem pretenda compreender a
toponímia, a cultura portuguesa e a nossa História. Trata-se do “Dicionário de
Fenício-Português”, em que é posto à disposição do leitor, e em carateres
latinos, o fundamental do léxico de algumas das línguas antigas do Próximo
Oriente, o que torna acessível a sua consulta a qualquer pessoa. O estudo que
agora apresento usa fundamentalmente esse instrumento como base de trabalho, e
sendo assim, todas as afirmações e conclusões que aqui são produzidas poderão
ser facilmente verificadas pelo leitor. Mas, ainda antes de iniciar a
apresentação das “palavras portuguesas de origem fenícia”, justifica-se pensar
um pouco sobre a linguagem no geral, de forma a melhor compreender a relação da
nossa língua com as línguas antigas do Médio Oriente a que chamarei de
“fenício”. Por isso, comecemos pelo princípio…
É sabido que no final do Paleolítico a população humana era muito
pouco numerosa e, consequentemente muito pouco densa. Não suscita dúvida que o
Neolítico implicou uma verdadeira “revolução demográfica” que veio fazer
crescer exponencialmente a população humana. Também não oferece surpresa que
esse crescimento demográfico tenha conduzido à progressiva expansão dos povos
neolitizados, com ocupação de terras férteis e agricultáveis sempre mais além,
com percursos preferenciais discutíveis mas, no que se refere ao mundo do
Mediterrâneo, genericamente de leste para oeste. Não parece haver acordo entre
os estudiosos que permita a criação de um mapa de isócronas absolutamente
consensual sobre a difusão das sociedades neolíticas na Europa e Mediterrâneo,
contudo parece ser seguro que, por exemplo, a cidade de Jericó, situada nas
margens do rio Jordão, já existia há 11 000 anos, o que permite admitir a
existência de uma sociedade agrícola estabilizada, o que antecede em milhares
de anos a chegada da agricultura à Europa[2].
Figura 1 – Proposta de início do Neolítico na Europa e Mediterrâneo
(datas BP). Segundo “The genetic history
of Europeans” (adaptado)
Não será portanto difícil de aceitar que essa gente que se expande a
partir desse foco inicial tenha transportado consigo as suas sementes e
animais, técnicas e crenças, e, inevitavelmente, a sua língua.
O episódio bíblico da “Torre de Babel”[3]
é, neste aspeto, particularmente interessante. Ele permite perceber que na
época em que o mito foi criado ainda havia uma memória distante de que em
tempos idos, todos os homens falavam a mesma língua[4].
E essa foi por certo a língua do povo do Neolítico que, com a dispersão
geográfica e com a passagem dos séculos e dos milénios, se foi desdobrando em
dialetos cada vez mais divergentes entre si, até se chegar ao ponto em que os
seus falantes deixaram de ser capazes de se compreender uns aos outros.
As línguas antigas do Médio Oriente hoje conhecidas, como o acádio, o
assírio, o ugarítico ou o hebraico antigo[5],
que são praticamente dialetos diferentes dessa antiga língua descendente do
falar Neolítico, constituem a base lexical que permite conhecer o essencial da
antiga língua, e a partir dela, encontrar a origem não latina do português[6].
A filiação da língua portuguesa nessa língua antiga, a que por
comodidade passarei a chamar “fenício”, pode demonstrar-se pela análise da
toponímia, pela decifração da escrita do sudoeste, pela compreensão das lendas
que por vezes parecem absurdas, e, evidentemente, pela própria etimologia do
português, assunto a que dedicarei o essencial deste trabalho.
Ainda antes de entrar no tema central destas páginas, ilustrarei com
alguns exemplos a importância que o conhecimento desta língua tem para as
várias áreas do saber. Vejamos o caso da toponímia. Há centenas ou milhares de
topónimos que só fazem sentido se entendidos a partir dessa antiga língua. Por
exemplo, um local chamado “Mal Lavado”, “Malavada”, ou “Malvado”, ao contrário
do que pode parecer, nada tem que ver com “sujidade” ou “malvadez”, mas tão
simplesmente com a abundância de água e a existência de poços artesianos.
Repare-se que “malavad” significa literalmente em fenício “poço de águas
subterrâneas que transborda”. Ainda hoje se pode constatar que os locais com
estes nomes têm em comum a extraordinária abundância de água. Veja-se a
propósito que “avad” (ou “abad”, dado que na língua antiga não existia a
diferenciação entre o “b” e o “v”) veio a dar topónimo como “Aivado” (sobretudo
no sul do país) e ”Abade” (mais comum no norte e centro), topónimos esses que
foram criados para referenciar a existência de poços. A grande maioria da
toponímia rural portuguesa tem origem nesta antiga língua, e o seu conhecimento
tem um potencial imenso para disciplinas como a História ou a Arqueologia.
Veja-se por exemplo que “Cabra Figa” significa “necrópole de incineração” e que
“Cabra Assada” quer dizer “encosta das sepulturas”, mas também que “Miséria”
corresponde a “fronteira”, “Charneca” é “terreno livre” (sem dono), etc., etc..
Todo um mundo de referências do passado passa a estar agora disponível e pronto
a ser traduzido e interpretado.
Também os documentos escritos no passado por vezes contêm termos ou
expressões incompreensíveis, que só fazem sentido à luz deste novo saber. Um
exemplo disso é a definição dos limites do concelho de Odemira referidos no
“Foral Velho” de 1256, que por sua vez faz apelo aos limites anteriormente
estabelecidos entre as terras do rei e as da Ordem de Santiago em 1235[7]. Entre
outros aspetos que requerem atenção, faz-se referência a um “azougues de
benazeual”, de localização indeterminada. Essa indeterminação resultou
precisamente de não ter sabido traduzir a expressão medieval com base no
“fenício”. “Azswg bmhzbl” significa simplesmente “santuário rodeado por uma
cerca no cimo da serra”[8], o que
corresponde seguramente ao ainda hoje existente santuário de Nossa Senhora das
Neves. De posse desta tradução imediatamente se desfaz qualquer dúvida sobre a
localização da fronteira medieval. Muitos outros documentos, sobretudo
medievais, poderão ser melhor compreendidos à luz do conhecimento da língua
antiga.
Também as lendas, que por vezes parecem tolices sem sentido, devem ser
lidas de novo, pensando que na sua origem está uma lenda contada na antiga
língua, e que a lenda atual conserva vestígios da versão original. Vejamos o
exemplo da lenda que conta a origem do nome da cidade de Estremoz. Diz
resumidamente a lenda que um grupo de pessoas fugia pelo Alentejo em busca de
segurança, até que encontrou, no local onde hoje se localiza Estremoz um
“enorme tremoceiro” que lhes proporcionou abrigo e proteção. Evidentemente que
a lenda parece ser um disparate completo, já que o tremoceiro é uma planta
leguminosa de poucos centímetros, e consequentemente não poderia ter dado
“abrigo e proteção” a um grupo de fugitivos. No entanto se pensarmos que
“strmooz” significa em fenício “fortaleza de proteção” ou “fortaleza de ficar
abrigado”, então o assunto muda completamente de figura… Quando a lenda foi
criada continha a palavra “strmooz” e consequentemente a ideia de fortaleza de
abrigo ou de proteção. Com o passar dos séculos e com as mudanças operadas na
língua falada, manteve-se a ideia de encontrar “abrigo ou proteção numa
fortaleza” (que é essência da lenda), mas acrescentou-se uma palavra
foneticamente próxima, o tremoceiro, como forma de a contar na nova língua. O
mesmo fenómeno ocorre em outras lendas, como a da origem do nome da praia de
“S. Torpes” em que se fala de uma “jangada de canas” que transportava um “galo
e um cão”, animais cuja presença na lenda resulta apenas de “gal con”
significar em fenício precisamente “jangada de canas”. Quem queira redescobrir
as nossas lendas terá um trabalho vasto e aliciante pela frente.
No que respeita à decifração da escrita do sudoeste[9], o assunto
é, como se compreenderá, muito mais complexo, mas pode-se garantir também que
ela reproduz esta mesma língua a que chamo de fenício. Assim ficamos a saber
que no período do Bronze Final e da Idade do Ferro, já se falava por aqui esta
língua, mas é muito provável que ela seja bem mais antiga entre nós.
A origem e evolução das línguas
Alguns estudos sobre primatas têm vindo a mostrar como estes relacionam
ideias com sons, e essa relação deve estar na origem daquilo a que costumamos
chamar de linguagem[10]. Um
processo semelhante deve ter ocorrido com os humanos e é, como seria de prever,
relativamente simples. Imagine-se que um clã dos primeiros humanos atribuiu o
som “Ô” ao que está em baixo (mais tarde será também o que é escuro, sujo) e o
som “Á” ao que está em cima (por analogia será igualmente o que é luminoso,
claro, puro). Se o som “G” for usado como alerta de perigo, “GÔ” ou “ÔG” será
“perigo em baixo” (por exemplo “cobra”), e “GÁ” ou “ÁG” será “perigo em cima”
(por exemplo “águia”). Na mesma lógica, se o som “M” for usado para designar
água ou outro líquido, “MÔ” ou “ÔM” será por exemplo “água turva, suja”,
enquanto “MÁ” ou “ÁM” será “água limpa, clara, leite”, e daí, no futuro, também
“ama” e “mãe”, etc.
Como é de calcular, o número de sons emitidos pelo ser humano deve ter
aumentado progressivamente, ao mesmo tempo que as combinações entre eles se
tornaram cada vez mais complexas e diversificadas, por forma a dar resposta a
realidades materiais e culturais cada vez mais ricas.
Deve ter havido entre os povos do paleolítico várias línguas
primordiais nascidas deste modo, que estarão na origem dos grandes grupos de
línguas da atualidade, mas esse é um processo difícil de reconstituir. O que
parece evidente é que, quando no Médio Oriente o Homem domestica plantas e
animais e se torna agricultor e pastor, a sua população “enxameou” o velho
mundo, levando consigo a sua língua, e promovendo a sua difusão entre outros
povos. As línguas do primeiro e segundo milénios antes de Cristo, como o
ugarítico, o hebraico antigo, o acádio ou o assírio, que nos servem para
conhecer essa língua antiga apresentam ainda grandes afinidades entre si, e
como se verá, muitas semelhanças com algumas línguas antigas e atuais da
Europa, o que permite perceber que todas elas tiveram uma origem comum.
Contudo, com o processo de divergência antes referido, criaram-se
palavras no ocidente que têm sentido nessas línguas antigas, mas que se saiba,
não foram usadas pelos povos antigos que as falaram. É um pouco como o nosso
“fato” do português, que é o “terno” brasileiro. Nós não usamos a palavra
“terno” para nos referirmos ao conjunto de “calças, casaco e colete”, mas
“terno” provém da ideia de serem três peças, e faz sentido em português. A
“geladeira” do Brasil é o nosso “frigorífico”, o “grampeador” é o nosso
“agrafador”, a “aeromoça” é “hospedeira de bordo”, etc Não usamos essas palavras no português que se
fala em Portugal, mas elas fazem sentido em português. Note-se que no caso do
português falado dos dois lados do Atlântico a separação é ainda muito recente
e tem havido esforços dos próprios estados para evitar a divergência. Como se
compreenderá facilmente, num tempo em que não existia televisão, rádio,
imprensa (nem tampouco acordos ortográficos), com a passagem dos séculos e dos
milénios essa divergência acentuou-se dando origem a dialetos distintos ou, ao
que poderemos considerar já, línguas distintas. Mas são línguas ou dialetos que
partilham indiscutivelmente a sua raiz antiga.
Assim, também nós usamos por vezes palavras diferentes das usadas por
esses povos antigos do oriente, mas que fazem sentido nas suas línguas. Vejamos
um exemplo. Para se referirem ao que nós chamamos de “barriga” esses povos
tinham o termo “krs”, que em ugarítico se traduz por “tripa” e em hebraico
antigo se escrevia “krx”[11] e se
traduz geralmente por “barriga”. Já acádios e assírios diriam qualquer coisa
como “karaxu” que costumamos traduzir por “ventre, estômago”. Em português esta
palavra não foi usada (ou se foi, não chegou até nós), mas em contrapartida
temos a palavra “tripa” que deve provir de “ţrp” que significa em fenício “ser
esquartejado”, e a própria palavra “barriga” que por certo tem origem em “bøh rk” (algo como “bâêreke”), que significa “formar barriga
mole”[12].
Uma outra característica que provém certamente das origens mais
distantes da língua, mas que ainda se pode detetar nestas línguas antigas, é
que a sons próximos correspondem geralmente ideias próximas. Assim, entre
muitíssimos exemplos possíveis, tomemos o caso de “lan”, que é “dormir” em
ugarítico, e “nal” é igualmente “dormir” em acádio e assírio. E esse tipo de
fenómeno não é uma simples metátese, mas antes uma característica de uma língua
em que a “palavra” conforme nós hoje a entendemos, ainda não existia.
Para a maioria das pessoas a língua é basicamente um conjunto de
palavras ligadas por uma qualquer lógica a que chamamos gramática. É por isso
difícil de aceitar que se possa falar de uma língua sem “palavras”. Contudo,
por muito que custe a aceitar, houve um tempo em que a ideia residia ainda em
sons simples, que combinados e sequenciados davam origem a ideias mais
complexas[13]. A prova
mais decisiva e indiscutível dessa realidade resulta da tradução das inscrições
da chamada escrita do sudoeste, em que não existem palavras individualizadas e
em que as diversas leituras resultantes de diferentes combinações de fonemas
conduzem a ideias semelhantes[14]. Moisés
Espírito Santo explica no seu Dicionário de Fenício-Português que a relação
primordial som/ideia de que falamos a propósito da origem da linguagem, ainda
existia nessas línguas, dizendo; “Nas
línguas europeias, os vocábulos são códigos aos quais se atribui uma
significação; os vocábulos homófonos têm significações autónomas. A língua é um
código de significações. Se permutarmos os fonemas dos vocábulos “pai”, “campo”
e os associarmos de outra forma, as novas formas deixam de ter relação com os
vocábulos anteriores. No Fenício antigo é diferente. A ideia reside no fonema.
Cada fonema encerra um conceito, um “embrião de ideia” relativamente
abrangente; dois ou três fonemas (a que alguns chamam raiz) circunscrevem a
ideia: o alef (a) traduz a ideia genérica de “origem”; o beth (b), a de
“entrar, introduzir”; o reš (r), “relação” (…). É como se os fonemas
associando-se em vocábulos produzissem as coisas. Porque um vocábulo é a
associação de dois ou três “embriões” e estes são por natureza vagos, os
vocábulos hebraicos são pluri-semânticos; um vocábulo parece significar coisas
muito diferentes; digo parece, mas só enquanto está isolado; em determinado
contexto os vários significados podem ser complementares.”[15]
Tomemos a título de exemplo ainda o radical fenício “rk”, que contribuiu
para a formação da nossa palavra “barriga”[16].
Este “rk” (que em muitas situações evoluiu para “rg” do português atual) não
deve ser entendido como uma palavra no sentido que damos atualmente à palavra
“palavra”, mas antes como um radical genérico que pode ser usado em diversas
situações. Atente-se que o “rk” fenício significa algo tão vago como “afrouxar, ser tenro, macio, fraco, débil,
mimoso, branco, suave, tímido, receoso, ser delicado, ser mole, ser vacilante…”
Essa ideia geral, que não é exatamente nenhuma das palavras usadas para a
definir, mas antes a ideia expressa por todas elas, quando por exemplo é
associada ao fonema “maru” [mare][17], que
significa “filho, gordo”, deu origem a “marreke” e daí ao nosso “maricas”
(filho gordo débil, mimoso, tímido, receoso, delicado…); associado a “bøir”
[bôir], que em fenício significa “gado, animal”, criou o nosso “borrego”
(animal branco, suave, delicado...); quando associado a “rph”, que significa
genericamente “filho”[18] deu
origem a “rphrk” (rapâreke) o que em português originou a nossa “rapariga”
(filha delicada)[19].
As línguas e os povos que as falam
No processo de difusão do Neolítico pelo mundo, devem ter ocorrido
diversos tipos de relação entre as antigas populações que aí viviam como
caçadoras e os novos colonos agricultores e pastores. É possível que em alguns
casos as populações nativas de caçadores tenham sido quase levadas à extinção,
ou que se tenham diluído entre os novos colonos deixando fracas marcas de si
mesmas para o futuro; noutros casos terá havido por parte dos caçadores
autóctones uma aprendizagem do modo de vida das gentes neolitizadas, e assim se
tenham transformado em agricultores e pastores, mantendo no essencial a sua
língua e identidade genética. Por esse processo é natural que se tenham somado
populações geneticamente distintas que poderão ter tido diversos graus de
apropriação da língua e cultura dos primeiros agricultores. É possível que essa
tenha sido a situação ocorrida entre nós. Os estudos genéticos realizados sobre
restos ósseos de populações Mesolíticas e Neolíticas parecem mostrar que
existiu algum tipo de colonização no período Neolítico, mas que a sua
proveniência não terá relação com populações do Próximo Oriente. Helen
Chandler, Bryan Sykes e João Zilhão, em “Using
ancient DNA to examine genetic continuity at the Mesolithic-Neolithic
transition in Portugal”[20], referem: “A ausência do haplogrupo J na amostra neolítica portuguesa indica que
ela não representa derivação directa a partir de agricultores do Próximo Oriente;
mas a existência de descontinuidade genética entre os grupos mesolíticos e
neolíticos implica que a transição para o Neolítico em Portugal terá envolvido
algum tipo de colonização.”
Terá havido ao longo dos milénios seguintes outros movimentos migratórios
através da grande via de comunicação que foi o Mediterrâneo, repetindo
percursos antigos, renovando gentes e ligando culturas. Muitos pontos da costa
continuaram a ser escala nas rotas comerciais da era dos metais[21]. Será
seguramente o caso dos portos do mar interior ligados ao comércio fenício, com
evidentes prolongamentos na Península Ibérica, e que parece ter tido
continuidade pelo menos até às ilhas britânicas.[22]
Usando um novo método analítico para a deteção de alterações genéticas
subtis, o “Genographic Project” revelou a herança genética dos fenícios. Desde
as terras do Próximo Oriente, colonos e comerciantes dispersaram-se pelas
margens do mar interior, e as suas marcas são ainda hoje visíveis nas
populações da Península Ibérica, Norte de África e ilhas do Mediterrâneo.
Figura 2 – “The
Phoenicians’ genetic footprint”[23]
A aceitar sem reservas ambos os estudos genéticos referidos, teremos
que admitir que após o Mesolítico terá havido uma entrada de povos agrícolas
que não eram fenícios, mas que em momento posterior chegaram à Península
Ibérica povos com ligações genéticas às gentes do Próximo Oriente.
Haverá contudo que admitir que boa parte dos colonos que ao longo dos
milénios se dispersaram pelas margens do mar interior, correspondesse a populações
que partiam do Próximo Oriente, mas não seriam necessariamente naturais da
costa da “fenícia”, pelo que a população migrante que chegou até nós seria já
ela própria geneticamente diversificada. Existem textos antigos que confirmam
esta ideia. Por exemplo, no Antigo Testamento (Ezequiel, 27. 10), pode ler-se a
respeito de Tiro: “Os persas, os lídios,
e os de Put eram no teu exército os teus soldados …”. A fazer fé nesta
afirmação, teremos que aceitar que nos barcos de Tiro viajavam gentes de
milhares de quilómetros em redor. Também no “Cântico de Débora” (Juízes, 5), se
percebe que as tribos de Dan e de Aser abandonaram o Próximo Oriente e se
dispersaram pelo Mediterrâneo, dado que se afirma que “…e Dan porque se deteve em navios? Aser se assentou nos portos do mar e
ficou nas suas ruínas”. Ainda em relação à diversidade de povos que terão
chegado a este extremo do mundo, Plínio-o-Velho diz que “Marco Agripa considerou que, na generalidade, esta costa é
originariamente dos púnicos[24].
(…) Refere Marco Varrão que à Hispânia em geral chegaram Iberos[25],
Persas, Fenícios, Celtas e Púnicos;”[26].
A recente utilização de contributos provenientes da genética para o
conhecimento do passado é não só de grande atualidade como de inegável
interesse. Contudo, no caso que aqui tratamos, que é o da origem da língua
portuguesa, convém não ceder ao fascínio inebriante de sobrevalorizar esse novo
conhecimento da genética, e em consequência tirar conclusões precipitadas.
Note-se que a evolução genética e linguística nem sempre se fazem em paralelo.
Um povo pode manter a sua identidade genética intocada e adotar uma nova
língua. Tomem-se como exemplo os povos andinos que em muitos casos mantêm
intocada a sua genética pré-colombiana, mas que falam castelhano, ou mesmo
povos africanos que passaram a ter como língua oficial um falar levado pelos
colonos europeus, e que geneticamente têm muito pouca ligação à Europa.
Por outro lado, recomenda o bom senso que prevaleça alguma humildade e
consciência de que no capítulo da genética histórica estamos a dar os primeiros
passos, e que é muito mais aquilo que ignoramos que aquilo que podemos
garantir.
A explicação tradicional para a origem das
palavras portuguesas
Com base no pressuposto que a língua dos povos conquistados pelos
romanos sucumbiu completamente ao latim, e que dela quase nada ficou[27], criou-se
uma estrutura de raciocínio enviesada, o que só poderia conduzir ao acumular de
incorreções. Assim, em grande parte dos casos, as palavras do português passaram
a ser consideradas de origem latina. Mas, como efetivamente muitas delas não
eram de modo algum latim, criaram-se formas de, ainda assim, as classificar de
“latinas”.
É assim que nascem as “formas latinas hipotéticas”, que é como quem
diz: se existe uma determinada palavra em português, é porque deve ter existido
uma palavra equivalente em latim. Concretizemos. Diz o pensamento
tradicionalmente aceite que, por exemplo, se existe em português a palavra
“abalar”, é porque em latim deve ter existido o verbo “advallare”. O problema é
que efetivamente o verbo “advallare” nunca existiu em latim (e se tivesse
existido significaria “atirar-se de um vale ao fundo”, o que também seria algo
estranho), mas em contrapartida existem em fenício as formas “abalu”, “ibl” e
“wabalu” que significam “trazer, levar, carregar”, que evidentemente estão em
muito melhor posição para constituir a origem do nosso verbo “abalar”. Há
centenas de palavras às quais tem sido atribuída esta origem em “formas
hipotéticas latinas”, que efetivamente nunca foram latim, e cuja origem se pode
encontrar com facilidade nas línguas a que vou chamando de “fenício”.
Para além das “palavras hipotéticas” foi criado todo um outro conjunto
de explicações erróneas, embora bem adaptadas ao objetivo supremo de satisfazer
a premissa inicial, de que o português é “filho do latim”. Inventou-se o “latim
popular”, o “latim tardio”, o “latim eclesiástico”, o “latim medieval”, o
“latim ibérico”… Diz-se por exemplo que a nossa palavra “arame” provém do
“latim tardio”, de “aramen”, que significa “bronze, objeto de bronze”. De facto
a palavra “arame” deve provir da ideia de “corda de cobre” ou “corda de
bronze”, ideia que em fenício corresponde a “erumen”, mas simplesmente nunca
foi latim, nem precoce, nem tardio, nem popular, nem erudito. A algumas outras
palavras atribui-se por exemplo uma origem gótica, mas que ainda assim teriam
sido apropriadas pelo latim. É o caso da nossa palavra “agasalho” que teria
tido origem numa forma “latina hipotética” “ad-gasaliare”, proveniente do
gótico “gasalja”, que significa… “companheiro” (!?). O facto é que, em fenício,
“h ksl” [âkasal] significa “o vestido”, e “hkshøl” [âksââl] quer dizer “o que
cobre por cima”, e este facto destrói completamente as construções teóricas
tradicionalmente aceites, por mais elaboradas que pareçam ser.
Há outros casos em que a etimologia latina aceite habitualmente é mais
que duvidosa. Por exemplo, origem proposta para a nossa já referida palavra
“borrego” é simplesmente inaceitável. Diz-se que “borrego” provém do latim, de
“burru”… que significa “encarnado”. No entanto em fenício “bøir” significa
“gado, animal”, e “buru”[28] é “animal
pequeno”; por outro lado, como vimos anteriormente, “rk” é “delicado, débil,
suave, branco, tímido, etc.”. Portanto, “burreke” será “animal pequeno
delicado”, ou algo equivalente, e “bøirreke” será por exemplo “gado delicado”.
Parece evidente que a relação entre o nosso “borrego” e o “burro” (encarnado)
latino, não faz o menor sentido.
Pela forte influência que o pensamento com origem em França teve sobre
os académicos portugueses, há frequentes analogias entre a origem proposta para
palavras francesas e as suas equivalentes portuguesas. Contudo, se é aceitável
a contaminação de palavras neerlandesas ou alemãs para o francês, por se tratar
de línguas de povos vizinhos, outro tanto já não fará grande sentido em relação
ao português. É dessa situação exemplo a palavra “dique”, que se diz provir do
“dijk” dos holandeses. No entanto em acádio “diq” significa precisamente
“trincheira”, e é natural que essa palavra esteja entre nós há muitos milhares
de anos[29].
A um número significativo de palavras atribui-se origem castelhana. É
bom de perceber que na maioria esmagadora dos casos a origem das palavras do
português é semelhante à do castelhano, e de nada adianta remeter a origem de
uma língua para a outra. De facto, o que se tornará necessário é descortinar a
origem das palavras semelhantes de ambas as línguas.
O que se pode concluir facilmente ao estudar as teses tradicionalmente
aceites para a origem das palavras portuguesas, é que foram cometidos atropelos
à lógica e a qualquer método que pretendesse ter rigor científico. Abusos na
evolução fonética, abusos na interpretação semântica, abusos absolutamente
inaceitáveis através da verdadeira invenção de palavras que de facto nunca
existiram.
Como se verá ao longo do presente trabalho, os exemplos de palavras
portuguesas com origem “fenícia” são às centenas, e este é apenas um “estudo
sumário”, o que significa que haverá muitas outras palavras de origem
semelhante, mas que ainda não estão aqui tratadas. Em qualquer dos casos a
demonstração da origem “fenícia” da língua popular portuguesa ficará certamente
feita.
A relação fonética entre o “fenício” e o
português
Como se viu anteriormente, o Cardeal Saraiva, na primeira metade do
século XIX já tinha defendido a origem hebraica de muitas palavras portuguesas.
Na época não foi mais longe em primeiro lugar por não terem sido ainda
decifradas outras línguas antigas do leste do Mediterrâneo, como o ugarítico, o
acádio ou o assírio, e portanto não estar de posse dos léxicos dessas línguas.
Por outro lado, não percebeu que em rigor o português não tem palavras
hebraicas ou de outras línguas antigas do Médio Oriente. O que se passa é que
há muitas palavras do português comuns a palavras de línguas como o hebraico
antigo, provavelmente não por terem sido importadas dessas línguas, mas antes
por partilharem com elas uma língua ancestral comum.
Muito embora se esteja no início do trabalho de reconhecimento das
palavras do português com origem “fenícia”, pode desde já enumerar-se um
conjunto de situações em que se percebem diferenças entre as línguas antigas
que servem de referência (sobretudo o ugarítico, o hebraico antigo, o acádio e
o assírio) e o português atual. Serão provavelmente diferenças entre todo o
grupo de línguas do leste e do oeste do Mediterrâneo resultantes da dispersão
dos povos do Neolítico. Vejamos as principais diferenças já percebidas.
O nosso som “a” provém muitas vezes do alef fenício (representado
neste trabalho pelo símbolo “a”) que corresponde nessa língua a uma leve
aspiração[30]. Entre
muitos outros, é o caso do nosso “abrolho”,
que deve provir de “abaru ølh”, com
o significado de “folhagem espinhosa”, ou de “archote” palavra que deriva de “arṣwt” (algo como “arsôt”),
e que significa “acender luz” (“ar” é “luz, brilhar, iluminar”, e “ṣwt” é
“acender”).
O ayn fenício, representado pelo símbolo “ø”, nas línguas antigas do
oriente deve ter sido um som aspirado nasal próximo de “õe”, “ãe”, ou “êu”. É
provável que entre nós tenha sido menos nasalado (ou evoluiu nesse sentido) e
por isso as palavras fenícias que o contêm correspondem com frequência no
início das palavras do português ao nosso “a” mais ou menos aberto. Por exemplo
“øqb” (ãeqaba), que significa
“chegar ao fim; parte final; até ao fim”, deu origem ao nosso verbo regular “acabar”[31];
de “øb” (ãeb), que significa “palio,
alpendre”, ou seja “cobertura”, resultou a nossa palavra “aba”[32]. Em
outros casos (menos frequentes) o “ayn” evoluiu para o nosso “o” aberto no
início das palavras, como é o caso de “orvalho”
que tem certamente origem em “ørbbll”
(ôrvvale), o que significa precisamente “humidade do anoitecer”.
Pode o nosso “a” provir ainda do “he” fenício, letra que correspondia
a sons levemente aspirados como “âa” ou “êe”, e é representada neste trabalho
pelo nosso símbolo “h”. É o caso dos nossos próprios artigos definidos “o, a, os, as” que devem ter origem neste “h” (âa) fenício que é usado nessa
língua precisamente como artigo definido, mas para os nossos dois géneros e
números (o nosso artigo não vem evidentemente do “illa” latino que poderá ter
originado o “la” castelhano e francês, mas não os artigos definidos do
português); é igualmente o caso (entre outros) de palavras como “labareda” tem origem em “lhb rød” (lâebarãeda), e significa
traduzido à letra “chama trémula”.
Por fim, o “a” do início de muitas das palavras portuguesas resulta de
fenómenos como a prótese como é o caso da evolução de “briḥ” [brig] (o símbolo
“ḥ” corresponde ao “ḥet” e falaremos dele adiante, mas geralmente esse som, que
nas línguas do próximo oriente é gutural e fortemente aspirada, evoluiu para o
nosso “g” ou “c”, portanto teremos “brig”) que significa em fenício “ferrolho,
tranca, muralha”, para a nossa palavra “abrigo” no sentido de proteção segura.
Algumas palavras portuguesas que se iniciam com um “a” nasalado provêm de
palavras fenícias iniciadas por “m” ou por “n”. Esse é o caso da palavra “andar” que deve ter origem em “nd” corresponde a “mover, afastar,
vaguear”.
O desaparecimento total de sons aspirados do português é uma das
características mais significativas da diferença entre o falar antigo do
oriente e o português dos nossos dias, ou, dito de outro modo e de forma mais
exata, é uma das maiores diferenças ocorridas na evolução da língua do
Neolítico entre o extremo Leste e o Oeste do Mediterrâneo. Para além dos sons
aspirados antes referidos (o alef, o hê e o ayn) existia em fenício um outro
som fortemente aspirado, o “ḥet”. As várias representações gráficas usadas ao
longo do tempo e pelos diversos povos que escreveram as línguas deste grupo a
que genericamente estamos a chamar “fenício”, são aqui substituídas pelos
símbolos “ḥ” e “ĥ”. Este som, originalmente gutural e fortemente aspirado,
desapareceu totalmente do português correspondendo muitas vezes aos nossos sons
“g” ou “c”. Isso verifica-se em muitíssimos casos: “pḥ” (fḥ), que significa em
fenício “lâmina fina ou delgada” passou a “fc” (ou para se ler hoje, com mais
facilidade, a “faca”); “ḥlf”, que significa “fazer brotar, deixar surgir”, está
certamente relacionada com o nosso termo “golfar”; “qrḥ” que significa em
fenício “rapar o cabelo em sinal de penitência, rapado, feito calvo”, veio a
dar o nosso “careca”, etc.. Em outros casos, o som ancestral da língua do
Neolítico, que no Médio Oriente evoluiu para ḥet, entre nós acabou por originar
sons como o “f”, o “j”, ou o “s”, e possivelmente em outros casos ainda pura e
simplesmente desapareceu.
Um dos factos que pode parecer mais estranho ao leitor é a total
indistinção entre os sons “b”, “p”, “v”, e “f”. Hoje até nos parece difícil de
conceber que em tempos todos estes sons tenham sido confundidos. Para o
compreender mais facilmente é bom pensar na total indistinção ente o “b” e o
“v” que se verifica em boa parte do Norte do país. O mesmo terá acontecido
certamente entre o “b” e o “p”. Note-se que mesmo nas línguas antigas
registadas no Médio Oriente essa confusão era evidente, quer pela ausência de
símbolos distintos para o “b” e “v” e para o “p” e “f”, quer pela semelhança
entre os significados de palavras escritas com “b” e com “p”, ou pela troca
destas letras nas palavras equivalentes de diferentes dialetos (por exemplo,
“brṣl” é “ferro” em hebraico antigo; “przl” em aramaico é igualmente “ferro”).
De resto essa indistinção foi suficiente para que os romanos tenham importado
palavras do fenício como “cabana” escrevendo “capane”. Assim, por estranho que
possa parecer, podemos encontrar a origem de uma palavra que hoje se escreve com
“b” numa palavra fenícia que se escrevia com “p”, como é (entre muitos outros)
o caso da nossa palavra “bando”, que certamente provém do termo ugarítico
“pamt”, que significava “grupo”.
Os dialetos “fenícios” que nos servem de base para reconstituir a língua
que está na origem do português apresentam outras diferenças em relação à nossa
língua. O exemplo anterior, da palavra “bando”, que provém certamente da
fenícia “pamt”, mostra como o “d” e o “t”[33]
permutaram neste processo de divergência ocorrida no espaço e no tempo. Há
muitos outros exemplos desta situação, como por exemplo “dd” [deda] que
significa “seio, seios, peito feminino”, veio a corresponder à nossa “teta”.
A sequência “ll” existente em fenício passou a “rl” ou “lr”. Está
nesta situação, entre outras, a palavra “baralhar”
que certamente provém de “bll”, que
significa em fenício “misturar, confundir”.
O nosso som “f” provém geralmente do “p/b” fenício, mas pode vir
igualmente de uma sibilante fenícia como o “z”. É o caso das palavras “pifar”, “bifar”
e “abafar”, todas elas certamente provenientes de “bz”, que significa “pilhar,
despojo, presa”. Pode também o “f” provir do ḥet, como ocorre em palavras como
“fita”, “ficar” ou “fechar”. O mais interessante é que parece que o som que
originou o ḥet em outras línguas, entre nós se “desguturalizou” e evoluiu para
sons como o “g” ou o “c”, o que parece facilmente aceitável, mas também para o
“s” ou “j” e o “f”[34], o que é
mais surpreendente.
A confusão já reinava entre os sons sibilantes usados entre as
diferentes línguas antigas do oriente, e ela ainda existe hoje na própria
variação regional da pronúncia do português. Note-se por exemplo que um “sacho”
em Lisboa é o mesmo que um “xaxo” na Guarda, ou mesmo que um “txatxo” em
Mangualde. O Antigo Testamento dá-nos um exemplo dessa variação já existente em
tempos bíblicos, ao referir a seguinte passagem: “A fim de impedir que os de Efraim escapassem, os guileaditas
bloquearam as passagens do Jordão. Quando algum dos de Efraim procurava fugir e
pedia autorização para passar, os homens de Guilead perguntavam: “És dos de
Efraim?” Se ele respondesse “Não”, obrigavam-no a dizer “chibolet”. Mas se ele
dizia “sibolet”, porque não era capaz de pronunciar correctamente a palavra,
então prendiam-no e matavam-no ali mesmo.”[35]
Não se deve por isso estranhar que na relação entre as palavras antigas do
fenício e as atuais do português exista essa variação.
Há outras relações, mais raras e aparentemente improváveis, mas que
parece terem existido. Poderá eventualmente ser o caso da sequência fenícia
“gn”, que passa ao nosso som “nh”. Isso parece ter ocorrido pelo menos na
palavra “ranheta”, que provém por certo de “rgn”, que significa “resmungar,
murmurar” e do muito usado em português “øwt”, que quer dizer “transtornar”. No
entanto não se deve estranhar em demasia esta situação porque o “nh” português
corresponde por vezes ao “gn” francês, e este tem também, via provençal, forte
influência desta mesma língua antiga.
Muitas situações em que a atual palavra portuguesa começa por “es”
correspondem a palavras fenícias iniciadas por um “s”. É, entre muitas outros,
o caso de “esmerar” que provém de “smr”, ou de “escalabardo”, que teve origem
em “sklbrd”[36].
Com o tempo e a continuidade dos estudos que de momento estão pouco
mais que iniciados, se chegará a uma compreensão mais perfeita da relação entre
a língua portuguesa atual e antiga, e as demais línguas da mesma origem.
[2] - “Jericho is one of the earliest continuous
settlements in the world, dating perhaps from about 9000 bce. Archaeological
excavations have demonstrated Jericho’s lengthy history. The city’s site is of
great archaeological importance; it provides evidence of the first development
of permanent settlements and thus of the first steps toward civilization.”
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/302707/Jericho Abril de 2013
[3] -
Segundo a narrativa bíblica, foi construída uma torre que pretendia ser tão
alta que chegasse ao céu. Isto foi considerado uma afronta por Deus, que
castigou os homens fazendo-os falar várias
línguas de modo a que não voltassem a ser capazes de se entender e a conseguir
grandes feitos comparáveis às obras de Deus. A tradução de “babel” a partir das
línguas antigas do Próximo Oriente é precisamente “porta
para Deus”.
[4] -
Naturalmente que todos os homens daquela região do mundo, que era o mundo
conhecido pelos autores do mito.
[5] -
Facilmente se pode conhecer o léxico fundamental dessas línguas através do
“Dicionário de Fenício-Português” de Moisés Espírito Santo.
[6] -
Não se julgue contudo que as antigas línguas europeias, como o latim ou o
grego, ou mesmo as línguas europeias modernas, não beberam nessa mesma fonte
linguística ancestral. Pelo contrário é fácil ver que há radicais comuns a
muitas línguas modernas que já se encontravam nestas línguas antigas, e que só
podem ter resultado da sua própria difusão. A seu tempo se verá que a própria ideia
do “indo-europeu”, que tem condicionado o pensamento nestas matérias, contém uma componente ideológica eurocêntrica e anti-meridional não
desprezível.
[8] -
Ver a este respeito: Almeida, F. R., O
Outro Lado da História, C. M. Odemira, 2009, p. 65 e seguintes.
[9] - Apresento em “O
Outro Lado da História” uma explicação sobre o funcionamento da escrita do
sudoeste, bem como a tradução de um conjunto de inscrições.
É contudo um assunto complexo ao qual tentarei voltar num outro trabalho
realizado apenas com esse propósito.
[10] - Veja-se a esse respeito, por exemplo, os trabalhos realizados sobre a
comunicação entre os “macacos de Campbell” (cercopithecus
campbelli) no Parque Nacional de Tai, na Costa do Marfim, nomeadamente os
do grupo liderado por Klaus Zuberbühler, da Universidade de St. Andrews, ou os
estudos realizados em Sulawesi sobre os primatas do género “Macaca”, por exemplo em “The Social
Repertoire of Sulawesi Macaques”.
[11] - A
escrita hebraica e ugarítica é consonântica, pelo que as vogais estão ausentes
da sua grafia e têm que ser introduzidas pelo leitor. A escrita acádia e
assíria foi transliterada dos textos originais em cuneiforme com vogais.
[12] - A
explicação que consta geralmente dos dicionários para a origem da palavra
“barriga”, é tortuosa e imaginativa, certamente encontrada, como em muitos
outros casos, à falta de outra mais lógica. Diz-se que provém de “barrica”, e
esta palavra, por sua vez, do termo gascão “barri”, que evoluiu pelo francês
“barrique” com o significado de “pipa pequena”. Na verdade a palavra “barriga”
deve antes provir de “bøh rk” (bââreke), em que “bøh” é “formar barriga”, e
“rk” é “tenro, delicado, macio; fraco, débil; mimoso; branco, suave”. Com o
tempo “bââreke” (ou um som próximo) passou a “barriga”.
[13] - Veja-se por exemplo a este respeito a “História da Lunguagem” de Julia
Kristeva, p. 25 e seguintes.
[14] -
Veja-se a este respeito Almeida, F. R., “O Outro Lado da História”, p. 81 e
seguinte. Aí se demonstra que uma sequência de texto incluída em várias
inscrições da “escrita do sudoeste” tem várias leituras em fenício, mas que são
sempre coincidentes ou muito próximas.
[15] -
Espírito Santo, Moisés, Dicionário de Fenício-Português, p. 87
[16] - No
Baixo Alentejo usa-se a palavra “borrega” para as bolhas que se fazem nas mãos
quando de um trabalho a que se não está habituado. Repare-se que também aqui
temos uma origem em “bøh rk”, que significa “formar barriga macia” ou “formar
saliência macia”.
[17] - O
“u” no final das palavras do acádio e do assírio deve ter correspondido a um
som semelhante ao “u” pronunciado em francês, ou seja, quase um som próximo do
“i”.
[18] - Em
rigor a palavra “rbh” significa em hebraico antigo “criar (filho)”, mas os sons
“b” e “p” foram certamente indistintos entre nós e nas origens destas línguas.
[19] -
Por oposição a “rapaz”, que provém de “rph øz” (rapâaz), e que significa “filho
forte”. Estará certamente já o leitor mais atento a reparar que esse som “az”
está presente no nome da mais forte carta do baralho, é designação de alguém
especialmente dotado (o “az” do volante, por exemplo), e pode encontrar-se
também no nome do metal mais forte da antiguidade – o aço, etc.
[20] - Using ancient DNA to examine
genetic continuity at the Mesolithic-Neolithic transition in Portugal,
Actas del III Congresso del Neolitico em la Peninsula Ibérica, Santander,
Monografias del Instituto Internacional de Investigaciones Prehistóricas de
Cantabria 1, 2005, p. 781-786.
[21] - Veja-se por exemplo “Identifying Genetic Traces of Historical Expansions: Phoenician
Footprints in the Mediterranean” em que se afirma: “Human genetic history, however, can be viewed as a palimpsest, in which
multiple events from different times but with similar geographical patterns are
superimposed. Expansions from the Eastern Mediterranean could include the
initial peopling by modern humans during the Paleolithic era, the subsequent
Neolithic-era transition originating in the Fertile Crescent ~8000 BCE, and
later events, such as the Greek expansion or the Jewish Diaspora.”
[22] - Segundo Heródoto uma expedição
fenícia mandada realizar pelo faraó Necao II circunavegou África no séc. VII a.
C., o que mostra bem a capacidade dos marinheiros da época. Já Estrabão afirma:
“As Cassitérides são dez em número e situam-se próximas umas das outras,
distantes para norte no Oceano ao largo do porto do Ártabro. (…) Muito antes da
nossa época, os fenícios eram os únicos que negociavam com eles, mantendo
secretas as rotas que conduzem àquelas ilhas.” In: Estrabão, Geografia, Livro
III, Capítulo 5, 11 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassit%C3%A9rides#cite_note-strabo.geo.3.5.11-6 Abril de 2013)
[23] - Mapa apresentado em:
http://www-03.ibm.com/ibm/history/ibm100/us/en/icons/mappinghumanity/transform/
(Abril de 2013)
[24] - No entender de Amílcar Guerra, o autor do texto estaria a referir-se a
“fenícios” e não a “púnicos”. Veja-se, PLÍNIO-O-VELHO E A LUSITÂNIA, p. 51.
[25] - Em relação à muito discutida origem dos Iberos, note-se que “eibri”, em
hebaico antigo, significa precisamente “hebreu”, e pode admitir-se mesmo que os
“judeus sefarditas” tenham origem nos iberos, com reforço de efetivos durante o
domínio romano, talvez como consequência da repressão romana que se seguiu à
grande revolta judaica do ano 70 d. C., ou à revolta judaica de Bar Kokhba de
132 d.C.
[27] - P.
Avelino de Jesus da Costa em “OS MAIS ANTIGOS DOCUMENTOS ESCRITOS EM PORTUGUÊS
- Revisão de um problema histórico-linguístico”, cita o Prof. J. M. Piel quando
diz que no século IX «o idioma do futuro
Condado Portugalense apresentava fonética e lexicalmente maiores afinidades com
o português de hoje do que com o latim falado no tempo da colonização romana».
A necessidade desmedida de valorizar o latim e os romanos tem relação com a
sobrevivência da elite romana ao abrigo da Igreja, após a queda do Império
Romano do Ocidente. A elite religiosa do império conserva a sua língua na
escrita e nela se revê a ponto de a tornar língua escrita oficial de muitos
reinos onde os povos falavam as línguas pré-romanas e as elites militares as
línguas dos invasores “bárbaros”. Neste processo, a elite religiosa, aos poucos,
passa a ser igualmente a elite intelectual e política e, evidentemente, defende
a língua latina como fator diferenciador e de prestígio. É assim que,
progressivamente, a língua latina vai sendo difundida
muito depois do desaparecimento do próprio império. De algum modo o império
romano sobreviveu ao abrigo da Igreja, e com ele as elites romanas e a sua
língua e cultura.
[28] - A
palavra “bøir” é hebraica, e a forma “buru” é acádia. No fundo são termos muito
próximos, que possivelmente parecem mais distantes pela diferente grafia e
transliteração para carateres latinos, mas que por certo eram pronunciadas de
forma muito semelhante: possivelmente como nós ainda hoje pronunciamos a nossa
palavra “burro”.
[29] - Ao
longo deste trabalho será possível verificar que muito do francês nasceu do
provençal, e que esta língua tem radicais muito próximos dos das línguas
ibéricas, e partilha com elas a origem fenícia.
[30] - Em relação ao valor fonético dos símbolos aqui referidos seguiu-se o
“Dicionário de Fenício-Português”.
[31] - A
etimologia geralmente aceite assenta numa hipotética palavra latina “accapare”,
palavra essa que nunca existiu.
[32] -
Evidentemente que a nossa “aba” não nasceu do termo “alapa” latino, que era o
nome dado à bofetada leve dada a um escravo para o libertar (fazia parte do
ritual da cerimónia da libertação dos escravos dar o senhor uma pequena
bofetada, sinal de liberdade). É mais uma das inúmeras situações em que houve
um claro abuso na busca de étimos latinos para as palavras do português.
[33] -
Resta saber se no início do Neolítico já existiria uma clara distinção entre
“d” e “t”, ou seja, se estamos perante uma evolução entre “d” e “t”, ou se, o
que começa a parecer mais provável, de um som indistinto “d/t” primordial, se
fixou em alguns dialetos o “d” e em outros o “t”.
[34] - O
Cardeal Saraiva refere com a maior naturalidade a relação entre o ḥet hebraico
e o “f” português. Para nós essa relação foi mais surpreendente porque a
relação que primeiro se detetou foi entre o “ḥet” e os sons “g” e “c”.
[36] - A
palavra “smr” significa “proteger, cuidar,
conservar, manter”, em hebraico antigo, e o “sklbrd”, significa “insensato
animal malhado”.
O seu estudo sobre a relação entre o português e o fenicio é muito interessante e as suas deduções sobre o significado dos fonemas são muito proximas da conclusão a que cheguei a partir do português e do françês. Acontece porém que nenhum povo colonisador conseguiu impor a lingua ao povo dominado, como podemos verificà-lo nas antigas colonias portuguesas ou francesas. A maior parte da população mantém a lingua vernacular. Verifica-se também que uma população expatriada, mantém a lingua dos seus antepassados durante varios séculos, os portugueses de Malaca ou os franceses de Quebec, por exemplo.
ResponderEliminarNo Proximo Oriente ou nos Balcãs existe uma variedade linguistica que não encontramos na Europa ocidental. Até ao século XX, existia um espaço linguistico comum desde o sudoeste da Europa até ao norte da Italia. Podemos atribuir isso aos fenicios?
Em contrapartida, no norueguês, falado tambem no Finmark, existem muitas palavras e toponimos identicos aos do português. A partir da interpretação da fonética portuguesa podemos explicar o significado da maior parte da toponimia europeia, o que não é possivel em qualquer outra lingua. Embora seja impossivel de desenvolver este tema em poucas palavras, estou convencido que são as linguas orientais que derivam do português e não o contrario.
O parabéns acima é de R.Torres q não conseguiu enviar pelo Google e optou por anonimo. Valeu.
ResponderEliminarParabéns pelo contributo para a compreensão da origem da língua portuguesa com o conhecimento das línguas antigas do médio oriente.
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